Terceirizar, Privatizar, Digitalizar.

gustavo s de borba
4 min readJun 10, 2024

Essas três palavras poderiam ser o slogan de algum candidato para as próximas eleições e acho que teriam eco em boa parte de nossa população, especialmente naqueles que acreditam em soluções prontas, padronizadas e de baixo custo.

Fico pensando nessa questão a medida que se desdobra nas manchetes de jornais desta semana o caso que está sendo chamado de privatização da educação do Paraná. O programa do governo propõe que 204 colégios estaduais de 110 cidades sejam administrados por empresas privadas. A ideia é que o movimento ocorra a partir de 2025 e impacte 10% da rede pública.

Eu, particularmente, não sou contra a busca de alternativas públicas ou privadas para a melhoria da qualidade da educação. Bem pelo contrário: acredito que a educação transforma e deve ser prioridade sempre. Mas exatamente por conta disso, precisamos ficar atentos e avaliar com cuidado propostas que impactam neste setor.

Um dos elementos que me chamou atenção na matéria publicada pela folha, que entrevista o secretário de educação do Paraná, é a ideia de que eles não buscam redução de custos com esse projeto. Assim, a ideia é repassar o custo por aluno para a empresa. Se hoje esse custo é de 800 reais, esse seria o valor para a empresa. Mas se um dos argumentos principais dos modelos de parceria privada é a ineficiência do setor público, porque passar o mesmo valor? Levanto esta questão como uma primeira, dentre muitas outras que poderiam fazer o debate se ampliar.

Outro ponto importante nos processos de mudanças é a busca por padronização e rastreabilidade. Estes são alguns dos motivos que justificam uma disseminação bastante abrangente, por exemplo, das plataformas digitais. é muito difícil identificar em nosso contexto atual um modelo que busque a mudança na educação e que não tenha, em seu centro, o uso de plataformas e livros digitais e também de um acompanhamento individualizado do aluno, que acaba sendo possível pelo uso da tecnologia (quanto tempo ficou na página, quantos cliques, quando respondeu certo, etc).

No segundo semestre de 2023 a Unesco divulgou um relatório com um olhar bastante abrangente sobre o uso de tecnologia na educação. Dentre as principais conclusões deste documento estão: a compreensão de que não temos ainda evidências sólidas e imparciais do impacto positivo da tecnologia educacional, a compreensão de que o conteúdo online aumentou sem que houvesse uma regulamentação suficiente com foco em qualidade e diversidade e ainda o entendimento de que muitos compram a tecnologia com o foco em “tapar um buraco”sem olhar os custos no longo prazo (Relatório Unesco, página 7)

Quando falamos de mudança, sempre é bom olhar para casos anteriores e seus impactos, especialmente em países de referência global. Nesse contexto, um dos grandes exemplos globais de digitalização é a Suécia. Ainda na década de 80, este processo já iniciava por lá, embora tenha se consolidado no início dos anos 2000. Entretanto, recentemente, o país retomou o uso de livros em papel e de outras práticas por considerar os resultados obtidos a partir deste processo de digitalização insuficientes.

Este ponto parece bem importante quando pensamos no impacto das telas em nossas vidas. Segundo dados da sociedade brasileira de pediatria, divulgados em 2022, o tempo de tela para crianças de 6 a 10 deveria ser de uma a duas horas por dia, e de 11 a 18, duas a três horas por dia.

Em nossa vida prática, estamos bem longe disso.

Enquanto escrevo sobre este tema, lembro de uma palestra que assisti alguns dias atrás com a romancista Muriel Barberi. Uma das coisas que ela falou e me marcou é que está cada vez mais difícil alcançarmos o estado de espírito que a leitura requer. Isso acontece como consequência da aceleração contínua e constante, do olhar que pula de um lugar para o outro, da necessidade instantânea de resposta, da falta de paciência e tempo para buscar o entendimento.

Quando pegamos um livro e vemos o longo caminho que temos pela frente, muitas vezes o desânimo já toma conta de nós e, como existem outros caminhos, buscamos alternativas mais rápidas. A grande questão é que a alternativa rápida é padronizada e nos leva para um lugar onde todos somos iguais.

A educação, não é isso.

Precisamos sim de acesso e condições de base iguais para todos. Mas a diversidade, a capacidade de operar conceitos distintos, de imaginar, de criar, tudo isso acontece de forma única, em cada um de nós. Padronizar é um potencial caminho para apagar o diferente.

Quando vemos projetos de busca de alternativas para a educação, precisamos sempre ficar atentos e nos perguntar: a serviço de quem essa decisão ou este projeto está? Quais os ganhos para os alunos? Qual o potencial para que cada um desenvolva seu caminho, suas diferenças, seus próprios processos?

Acredito que projetos de mudança em educação devem priorizar o fortalecimento do espaço transformador que é a conexão entre professores e alunos. Essa conexão, analógica ou digital, precisa ser qualificada para que o diálogo seja um elemento propulsor do engajamento, do senso de conexão e bem-estar, da compreensão de que estamos todos juntos buscando algo de melhor para cada aluno, e para a nossa sociedade.

Alguns textos de apoio para entender melhor:

Relatório da UNESCO:

Relatório de monitoramento global da educação, resumo, 2023: a tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386147_por

Mudanças na educação do Paraná:

https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/06/90-dos-pais-aprovam-escolas-estaduais-administradas-por-empresas-diz-secretario-do-parana.shtml

https://g1.globo.com/pr/parana/educacao/noticia/2024/06/04/saiba-como-deve-ser-a-gestao-de-escolas-estaduais-do-pr-por-empresas-e-o-que-o-projeto-nao-esclarece.ghtml

O modelo na Suécia:

https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/08/suecia-decidiu-voltar-a-livros-fisicos-na-contramao-do-que-planeja-governo-tarcisio.shtml

Uso de telas:

https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/criancas-no-celular-saiba-o-tempo-ideal-para-cada-idade/

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gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.