Quais as nossas prioridades enquanto sociedade?
As notícias que ouvimos, e também o que vivemos em nosso dia a dia, remetem para a compreensão mais sistêmica de uma crise global sem precedentes, especialmente em termos climáticos.
Nessa semana em que escrevo, limitando meu olhar apenas ao Brasil, vejo manchetes que colocam em pauta as enchentes de Santa Catarina, com 125 cidades em situação de emergência e a maior seca no Amazonas, com o rio Negro chegando a menor profundidade desde que são coletados dados sobre o nível do rio, 120 anos.
A crise climática e tantas outras questões globais, como erradicação da pobreza, da fome, das guerras, deveriam ser os grandes temas em pauta no nosso dia a dia.
Investimentos, premiações, reconhecimentos, deveriam girar em torno destes elementos, que garantem a sustentabilidade e sobrevivência de nosso coletivo humano, hoje e no futuro. As reuniões, os summits, os eventos, deveriam ser feitos para debater isso, e celebrar os sucessos: mais histórias e possibilidades de justiça social e vida coletiva.
Mas infelizmente, não é isso que acontece.
Seguimos buscando acelerar o desenvolvimento, insistindo em um modelo que se transformou a partir da noção de “ser” para “ter”. E isso se reflete em quase tudo que criamos.
Tudo vira negócio. Mas como mudar isso?
Nos meus 30 anos de profissão, tive a oportunidade de conviver com muitas pessoas fantásticas e empreendedoras, que buscavam (e ainda buscam) desenvolver ideias para transformar positivamente as suas realidades, atacando problemas que impactam negativamente em nossa vida e buscando ganhos coletivos.
Nesse caminho eu destaco algumas experiências, que de certa maneira ilustram isso: A Sarah Elizabeth Ippel, que desenvolveu uma escola inovadora em Chicago, com foco em sustentabilidade e em processos inovadores de ensino; o Mert Iseri, que criou a empresa SwipeSense, para reduzir o nível de infecção nos hospitais; o Aaron Horowitz, que criou a empresa Sproutel, com foco em ajudar as crianças a aprenderem sobre a diabetes, por exemplo, tratando um bichinho de pelúcia; a Raíssa Kist que criou a empresa Herself, com foco em educação menstrual, que busca entre outras coisas a equidade de gênero e o Eduardo Goerl, que reconhecendo os perigos da atividade de pulverizar campos criou a Arpac uma empresa de drones que além de reduzir o impacto no ambiente, reduz a questão dos acidentes.
Todos estes empreendedores, e muitos outros, criaram seus negócios a partir de ideias que buscavam atacar diretamente um problema coletivo, real, muitas vezes criado por nós, humanos, a partir das iniciativas de outras organizações.
Cada um deles criou um negócio para fazer o mundo melhor, ganhando merecidamente dinheiro com isso. E isso não é um clichê, é uma realidade.
São empreendedores que criaram algo para ser, não estritamente para ter, ou para vender.
As organizações destes empreendedores nasceram em um tempo em que temos mais possibilidades, inauguradas pela tecnologia, com uma maior facilidade para criar e para desenvolver ideias.
A questão é que, com mais possibilidades, com maior interesse do mercado, surgem muitas e muitas ideias. Ideias com potencial transformador, ideias com potencial para venda, para gerar demanda, para novos consumos, ideias que nem sabíamos que queríamos ter. Ideias que se desenvolvem a partir de Startups.
Esse processo tem avançado naturalmente através da consolidação de mercados e empresas, muitas tendo como principal objetivo gerar resultado financeiro e explorar um espaço de mercado.
Hoje, celebramos esse avanço, compreendendo que com mais empresas, temos mais desenvolvimento. Especialmente em um contexto em que a grande maioria falha (90% das startups), precisamos de volume para gerar bons negócios.
Mas também não percebemos que com mais desenvolvimento temos efeitos colaterais, especialmente nos impactos ambientais, na saúde dos trabalhadores e, através do uso da tecnologia, na potencial precarização das relações de trabalho.
Nossa celebração de volume de startups, de novos negócios, muitas vezes ignora algumas questões essenciais de nosso dia a dia.
Me parece que avançamos em um processo bastante difícil que partiu da ideia de Ser+Transformar, passou pela ideia de Ter, e acelerou rapidamente para a ideia de Vender.
Em muitos casos, deixamos de viver um ciclo virtuoso, para viver uma linha que busca a exponencialidade dos ganhos e a ampliação do resultado financeiro.
Não tenho respostas precisas nesse texto, apenas a proposta de reflexão e de caminhos, mas algumas questões são pertinentes para nossa reflexão. Por exemplo:
Será que celebrar um número maior de startups é o caminho para desenvolvermos um mundo melhor?
Embora essa seja uma abordagem bastante interessante para a busca de desenvolvimento, fico com as perguntas que fazem parte de meu olhar para o mundo:
Qual a relevância de termos mais e mais negócios?
Segundo dados publicados no startupi.com.br, o recente panorama de startups na América Latina aponta o Brasil como grande líder, com mais de 13 mil startups ativas, o que representa quase 2/3 do volume na América Latina. Dados da Associação Brasileira de Startups apontam que hoje são mais de 12,7 mil startups no Brasil.
Quantas destas startups estão nos diferentes paradigmas propostos acima: transformar, ter e vender?
Algumas semanas atrás, quando esteve visitando o Brasil, Douglas Rushkoff falava sobre isso, o momento que vivemos no qual alguém cria uma empresa apenas pensando no potencial de venda, para ser remunerado por isso. Hoje, talvez um dos grandes objetivos de boa parte dos empreendedores que desenvolvem uma ideia seja vender rápido, ou escalar e vender logo em seguida.
Esse processo faz com que tenhamos um número muito grande de empresas, mas talvez sem um propósito, uma relação de afetividade, cuidados com as pessoas, ou mesmo um cuidado necessário sobre os impactos destas empresas. Começamos a perder a potência transformadora para desenvolver empresas que realmente impactam positivamente no planeta.
Cabe aqui destacar uma matéria na Forbes do final de 2022 aponta um estudo da CNI em parceria com a Mobilização empresarial pela inovação que aponta que os investimentos em empresas no estágio de lançamento dos primeiros protótipos em sua maioria são em empresas com soluções para saúde, indústria e software. Em quarto lugar, com 10,9% dos investimentos, aparecem startups que atuam com sustentabilidade.
Será esse é o caminho para avançarmos enquanto humanidade?
Me parece que deveríamos voltar no debate que coloca em pauta o poder transformador que cada um de nós tem, nos coletivos em que vivemos.
Essa questão surgiu para mim a partir do momento em que escutei no podcast mano a mano, o Mano Brown entrevistando a ministra Marina Silva. Ela dizia: “Devemos pensar em habilidades, capacidades. Existe limite para ter, não para ser. Precisamos avançar nesse deslocamento”. (Mano a mano, com Marina Silva — dia 10 de agosto de 2023, minuto: 111)
Eu concordo com a proposta da ministra, e no caso das corporações, acho que a questão é ainda mais grave: saímos do ser, para o ter, e finalmente para o vender. Com esse terceiro movimento, o deslocamento necessário que estava em cada um de nós, torna-se quase inviável. Se antes o debate era sobre compreender a importância do meu impacto, da transformação que posso ter efetivamente sendo, agora esse lugar desaparece, pois não existe lugar para ser quando a dimensão real do espaço onde eu posso transformar é vendida para outras pessoas.
Me parece que deveríamos ampliar um debate que celebra o novo, celebra o empreendedorismo, celebra as ideias, mas contextualizadas no poder transformador que elas têm, para tornar nossa vida, hoje e no futuro, viável, melhor, e mais justa coletivamente.
Não se trata de volume, de número de empresas, de sermos melhores nisso ou aquilo. Trata-se da construção de indicadores e organizações que lidam com as questões que impactam todos nós.
A seca na Amazônia, as enchentes no Sul, a guerra no Oriente médio, a fome espalhada no planeta, a concentração de renda e a ampliação da pobreza. Esses, e outros tantos focos, deveriam guiar nosso olhar individual e coletivo, para a transformação de nossa realidade.
Precisamos mais do que nunca, ser.
Para nós, para o outro, e para o planeta. Já não adianta mais ter, ou vender.
Se insistirmos neste processo, logo estaremos em um não lugar e potencialmente em um processo de destruição de cada um de nós. Não existe eu, nem nós, se não estivermos aqui.
Mas qual a solução?
Li hoje uma matéria que aponta para os avanços no uso de material reciclado para tubos de pasta de dente e da importância da reciclagem. A ideia de circularidade não deveria ser um pressuposto e ser responsabilidade das empresas? Se fosse assim, teríamos um maior número de programas de reciclagem ao longo do tempo? Me parece que sim.
Nossa vida é assim, começamos o dia interagindo com produtos que tem potencial para impactar negativamente o meio ambiente, atravessamos horas atuando em diferentes áreas, sem ver o tempo passar e interagindo com a constante potencial destruição ambiental, e encerramos o dia, antes de ir para a cama, retomando a parte inicial desse ciclo, interagindo com um produto com potencial negativo para nosso planeta. As horas passam, nossos dias passam e nossa compreensão de que precisamos de uma transformação sistêmica, fica para depois. Sempre fica para depois. E mais e mais empresas surgem, motores do dito desenvolvimento e da geração de valor.
Precisamos redefinir valor, talvez buscando alternativas em autores como Elke Ouden, que apresenta a ideia de um valor com propósito considerando múltiplos stakeholders. A autora propõe a observação de diferentes dimensões (incluindo a econômica e ambiental, mas também considerando uma dimensão psicológica e outra social) para 4 atores principais: as pessoas, as empresas, o ecossistema e a sociedade. A partir disso, poderíamos pensar em indicadores e em uma legislação que de alguma forma definisse o que pode e o que não pode ser feito, nos tempos que estamos vivendo.
É importante avançarmos no debate público, na busca de indicadores, de legislação adequada e da efetiva identificação destes custos reais. Da mesma forma, devemos evitar que empresas nasçam nesse paradigma, em um espaço onde tudo podem, dado que nos entregam algo que queremos. Esse conceito de valor perdeu todo o seu valor ao longo do tempo.
O valor é um conceito sistêmico e deve percorrer nossa compreensão de coletividade. Não deve estar estritamente atrelado ao indivíduo ou a empresa.
Finalmente, preciso dizer que muitas empresas startups atuam com foco na solução de problemas globais, com tecnologias limpas, etc. Mas essas empresas ainda não são a maioria. Tanto que são agrupadas em subcategorias.
Precisamos avançar para um espaço coletivo onde a única categoria é o respeito ao planeta, a vida e ao direito que todos temos ao nosso presente e ao nosso futuro. Isso é responsabilidade de todos que aqui habitam. Esse é aparentemente o único caminho que temos para percorrer.