Pitanga

gustavo s de borba
3 min readOct 27, 2023

Eu sou da época que fruta dava em árvore. Não se preocupem, eu sei que ainda é assim hoje, mas com tudo disponível ao alcance da mão de quem tem recurso para comprar, as vezes parece que esquecemos de onde os alimentos vem. Algum tempo atrás, não era só no mercado que encontrávamos as frutas. Andávamos pela rua, e volta e meia encontrávamos algum tipo de fruta para colher. Pé de amora, árvore de pitanga, bergamota, laranja.

Eu morava em Santa Maria, e talvez por isso este tipo de interação tenha sido mais presente em minha infância. O interior esconde o privilégio do convívio com o natural. Mas só nos damos conta disso quando essa relação já passou, ou quando não temos mais essa oportunidade de interagir com os seres que habitam a nossa rua e nos dão algo sem pedir nada em troca.

Hoje moro em Porto Alegre, e tenho explorado bastante a cidade caminhando com a Aninha. Duas quadras de nossa casa, encontramos uma árvore de pitanga. Passamos todo dia por ali e pensamos em colher algumas frutas, que se apresentam a nosso alcance.

Nesse momento eu sempre lembro da canção do Thiago Ramil, falando sobre a linda relação de um pé de amora com uma bailarina. A música diz “A amora eu separo, num ramo mais embaixo, para ela pegar”.

Fico pensando se aquelas frutas mais embaixo são uma oferta dela para nós, como que se apresentando e mostrando todo o valor que tem. Mas todo dia, deixamos para depois, deixamos para levar para casa no caminho de volta. Quando voltamos, as pitangas não estão mais lá. Alguém colheu, ou a árvore lançou as frutas no chão.

Hoje passei por essa pitangueira no final de minha corrida, e vi uma mulher parada ao lado, colhendo pitangas e apreciando a árvore, como que agradecendo por uma oferenda saborosa e gratuita. Corri um pouco mais, passando pelo colégio americano e encontrei um outro pé de fruta, que pela distância, não identifiquei. Na frente da árvore, contemplando, buscando algo nas copas, estava uma senhora que aparentava já ter mais de 80 anos. Passei correndo e quando voltei ela ainda estava ali: contemplando aquela árvore, que habita o mesmo espaço que nós.

Essa conexão entre a natureza e as pessoas está presente em todos os espaços rurais e urbanos. Um universo de possibilidades que não percebemos pela necessidade de pressa, pelo olhar baixo, que contempla as notícias e as mensagens no celular, pela necessidade de avançar rápido para chegar em algum lugar.

E o natural permanece lá, contemplativo, esperando a interação com quem quer que seja.

Dia após dia.

Parece que, independente do que aconteça hoje, amanhã ou depois, a única certeza é a permanência do natural, da beleza que está nos caminhos que se constroem para nós, sem a nossa interferência.

Caminhos que desenham as possibilidades infinitas que temos nos espaços que moramos e que nos mostram que a vida é mais do que cápsulas de tempo comprimidas em um dia.

Hoje vou voltar para casa de ônibus e passar caminhando novamente pela pitangueira. Espero que ela tenha separado uma fruta, num ramo mais embaixo, para que eu possa pegar. Caso não tenha, vou passar por ali para contemplar e renovar a esperança de reencontrar ela amanhã, talvez com uma fruta só para nós.

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Written by gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.

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