Paralelepípedo

gustavo s de borba
3 min readAug 8, 2023

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Se me pedissem para definir a minha infância em uma palavra, provavelmente eu escolheria uma não muito usual: paralelepípedo.

No interior do estado, no final da década de 70, a maioria dos meus amigos morava em casa, em ruas de paralelepípedo. As ruas asfaltadas eram tão raras quanto escadas rolantes — no caso das escadas rolantes, quando surgia alguma na cidade, corríamos para tirar uma foto com as maquinas analógicas e os filmes Kodak.

Embora as ruas fossem pavimentadas com esta pedra cúbica que chamamos de paralelepípedo, o mais interessante era os diferentes usos que fazíamos deste tipo de material. Não sei se já pararam para pensar, mas as ruas eram bem organizadas e não me recordo de faltar nenhum paralelepípedo nas ruas em que morei em Santa Maria. Entretanto, toda rua tinha pedras sobressalentes, como se a prefeitura deixasse para nós algumas peças de um quebra-cabeças que podíamos repor, caso as originais se perdessem por algum motivo.

Lembro que cada rua tinha umas 4, 5, 6 pedras encostadas nas calçadas e que serviam para adultos e crianças. Nos tempos em que o freio de mão dos carros era tão confiável quando a previsão de inflação mensal, muitos adultos colocavam estas pedras nos pneus para, caso o carro andasse, segurar praticamente uma tonelada de ferro, com um paralelepípedo. No nosso caso era mais fácil, pois tínhamos um Fiat 147, com janela para o solo (um pequeno buraco no assoalho), e este gigante pesava pouco menos de 800 kg.

O uso dos adultos, era objetivo: travar o pneu para evitar um potencial desastre.

Já o uso que fazíamos enquanto crianças, era bastante criativo.

Algumas vezes as pedras eram usadas como obstáculos, quando fazíamos corridas de BMX e Caloi Cross, que se transformavam em motocicletas potentes, impulsionadas pelo barulho produzido pelo motor de tampa de margarina com prendedor, no aro traseiro da bicicleta. Usávamos também para simular uma rampa, ou melhor, uma escada, para subir com as bicicletas o cordão da calçadas e seguirmos na trajetória rumo a linha de chegada em nosso imaginário circuito Hollywood, presente nos pôsteres que tínhamos nos quartos com o piloto Moranguinho em sua moto de 250 cilindradas.

Uma outra forma de utilizar as pedras cúbicas era transformando as mesmas em traves de uma goleira imaginária, projetada no grande campo de futebol que nossas ruas de paralelepípedo se transformavam durante o final de tarde, após a aula. As goleiras de paralelepípedo eram mágicas. Quando chutávamos rasteiro, o destino principal da bola era a trave, ou a linha de fundo — que geralmente dava para uma rua perpendicular a nossa, e que sempre era uma lomba para dificultar o processo de buscar a bola. Quando chutávamos alto e a bola “ia em gol”, se o goleiro não fizesse uma bela defesa, a polemica começava: “foi gol”, “não”, “passou por fora da goleira”; “não, eu vi, foi gol”. E assim continuava. Muitas vezes era fácil decidir, a maioria chegava a uma conclusão e o gol era ou não validado. Outras vezes a polêmica se instalava e o jogo terminava com os times brigados, até o final de tarde do dia seguinte. Algumas vezes, um dos amigos mais enfurecido levava a discussão para o lado pessoal e fazia o último e mais assustador uso do paralelepípedo: uma pedra para atingir o adversário. Nesses casos, a correria era generalizada, e na maioria das vezes, devido ao peso da pedra, quem se machucava era o potencial agressor, derrubando no dedo do pé, ou machucando a mão na hora do arremesso. De qualquer forma, tudo era diversão.

Entre as aulas, os temas, as refeições, as brincadeiras, sempre tinha um paralelepípedo.

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Written by gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.

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