Para além da gratidão

gustavo s de borba
4 min readFeb 14, 2025

Tenho pensado muito nas características que nos distinguem das máquinas e também entre nós. Já escrevi bastante sobre algumas delas, impossíveis de serem copiadas, como a criatividade e a ambiguidade humana. Mas ontem, 3 estímulos diferentes me fizeram pensar em uma outra característica, mais subjetiva, e que provavelmente jamais será replicada, ou mesmo emulada.

Vamos primeiro aos estímulos.

Estava lendo um texto de Maria Cristina Ibarra (autora que a Karine Freire me indicou em algum momento), sobre Design Sentipensante, conceito bastante discutido no campo do design pluriversal, quando recebi uma mensagem da Alice Kolb me indicando o livro Dawn of Everything, do David Wengrow e David Graeber, especialmente pela compreensão das tribos indígenas como espaços que conseguiram implementar uma democracia autêntica. Pensando nestas questões e no impacto delas na formação do designer, liguei a tv e naveguei pelo Youtube, quando parei para assistir o vídeo do Coldplay all my love (o terceiro estímulo). Neste clipe Chris Martin faz uma homenagem ao Dick Van Dyke, ator americano muito famoso que completou 99 anos e atua no filme Mary Poppins.

Esse olhar composto por estímulos literários e artísticos, mas acima de tudo, humanos, me levou a pensar em algo que sentimos e que nos compele a fazer o bem para alguém indistintamente. Alguém que podemos nem conhecer pessoalmente, ou que convivemos muito tempo atrás.

O exemplo do clipe é o mais literal. A banda não precisava realizar essa homenagem, mas fez. Fiquei pensando em como definir isso, a nossa real capacidade de processar emoções e “give back”, devolver para alguém, mesmo sem nenhuma necessidade. Esse sentimento vai além da gratidão.

Gratidão é sim um sentimento fundamental e que transforma nossas vidas, e também está escasso atualmente. Muitas vezes é despertado pela perda, ou pela saudade.

Sempre penso na arte para ilustrar ações humanas, e por isso vejo bons exemplos de gratidão a partir de homenagens póstumas na música. A canção Nighshift, dos Commodores, por exemplo, homenageia Jackie Wilson e Marvin Gaye, após a sua morte, pela contribuição de ambos para a música Soul. A música Luther de Kendrick Lamar, que tem este nome a partir das evidentes referências a música if this world were mine de Luther Vandross e Cheryl Lynn, pode ser um exemplo bem mais recente.

Mas esse sentimento vai além.

Mistura empatia, altruísmo e gratidão, e torna possível, em um contexto desconectado e futuro, homenagear alguém que, mesmo sem saber, nos impactou positivamente.

Imagino que, no caso do Coldplay, aconteceu isso: uma homenagem para alguém que impactou a história de membros da banda e tantos outros, mesmo sem saber.

Podemos perceber isso a medida que entendemos os diferentes pluriversos com os quais convivemos, ou mesmo as referências dos povos originários e sua relação, altruísta, com a natureza.

Esse sentimento, que se revela a partir do que fazemos pelo outro, me leva a pensar no melhor exemplo de promotores desta característica e também de potenciais receptores de tal emoção: as professoras e os professores.

Em um universo cada vez mais padronizado, com narrativas construídas por elementos pontuais acelerados e desconectados da realidade, com a busca constante pelo apagamento da diferença, é difícil pensar em uma profissão que promove o crescimento do outro e do grupo, através do cuidado e do afeto. Mas é isso que educadores e educadoras fazem.

Reconhecer cada estudante como uma pessoa única é fundamental, e a partir disso ajudá-los a revelar quem são para e com os outros, um desafio de proporções gigantescas. Mas é isso que boas professoras buscam fazer na sala de aula, com empatia, altruísmo e gratidão.

Lembro de um video do professor Stephen Brookfield, onde ele fala sobre o que espera quando entra em aula. Didaticamente, e em tom bem humorado, ele diz que espera “confusão, hostilidade ou apatia”. Obviamente faz esta brincadeira para demonstrar a importância de planejarmos nossa ação e nossa interação nesse espaço fundamental para transformar o mundo.

O tempo passa, e lá na frente, provavelmente alguns destes alunos vão lembrar dos momentos que definiram quem eles são, dentro de uma sala de aula em uma pequena escola, em algum lugar do interior de nossa país. E esse sentimento vai se revelar.

Acho que nem preciso dizer que essa capacidade, baseada na nossa história, na construção do indivíduo, do grupo, da comunidade, na nossa participação social, no nosso senso de pertencimento, nunca será replicada.

Por isso, faz muito mais sentido deixar de lado a mínima possibilidade de substituição, e pensar em como essa parafernália de máquinas e tecnologias pode nos ajudar. Mas não apenas aqueles que tem mais recursos, ajudar a todos.

Por enquanto, a narrativa é a da padronização, do desenvolvimento, da busca acelerada pela melhor tecnologia e o consequente lucro para aqueles poucos que provavelmente podemos contar no dedos de uma mão.

Mas com altruísmo, empatia e gratidão, acho que podemos ir muito além. E quem sabe retomar o caminho de construção coletiva e do nosso senso de pertencimento e conexão com nosso planeta.

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Written by gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.

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