Onde estão as pessoas?

gustavo s de borba
3 min readJul 26, 2024

A arte é, também, o espaço da construção do novo e da interação humana. Quando lemos, quando assistimos um filme, quando vamos ao teatro, ampliamos nosso repertório e construimos possibilidades novas a partir das trocas que fazemos uns com os outros. Dessa forma, a arte é uma espécie de mobilizador cultural para a transformação pessoal e coletiva. Através desse processo de diálogo e interação, construimos conhecimento, reconhecemos possibilidades e crescemos como sociedade. Tudo isso a partir da nossa interação.

Embora isso seja fundamental, é importante perceber que vivemos um momento de transformação dos espaços que nos permitem interagir pessoalmente. Uso como exemplo 3 dispositivos centrais no século XX e que hoje em dia estão desaparecendo: jornais, cinema e teatro.

Se pensarmos em Porto Alegre e voltarmos no tempo, vamos ver que em um dado momento histórico estes dispositivos eram mais abundantes. Em 1838 existiam 35 jornais. Esse número reduziu e se estabilizou mais para o final do século XIX, quando foram identificados seis jornais (1873). Nesse mesmo período, tínhamos 28 médicos para uma população de 27751 pessoas. Porto Alegre contava com 50 grupos teatrais e, entre 1868 e 1880 surgiram mais de 10 associações de escritores. (1)

Se pensarmos globalmente, no cinema, por exemplo, dados de pesquisa de Derek Thompson (2) apontam que o número de ingressos para o cinema comprados em média por um americano, no ano de 1950 era de 25, em 2015 havia caído para 4.

Na Austrália a mudança é ainda mais acentuada. Em 1928 eram 29,7 ingressos por pessoa e em 2023 apenas 2.2. (3)

Quando olhamos para estes dados históricos e comparamos com hoje, é fácil compreender porque vivemos uma realidade distinta: as mídias avançaram, a tecnologia se transformou e quase tudo que era analógico atualmente tem um substituto mais potente digital.

Mas também é verdade que essa mudança reduziu as formas de interação interpessoal e nos afastou de grupos com os quais estávamos mais acostumados a conviver: especialmente os outros humanos e a natureza.

Hoje, dialogamos utilizando um meio digital que nos ilude e nos afasta. Uma mídia que promove o afastamento justamente pela promessa da proximidade, um paradoxo deste século. Além disso, temos quase tudo a um clique: o filme, a música, o teatro, o jornal, a revista. Toda essa facilidade nos leva a uma percepção de que não temos tempo para tudo e a leitura que fazemos das notícias, por exemplo, não passa da manchete. A visualização do filme ou vídeo se desenvolve em um tempo diferente, com maior velocidade e sem o foco necessário — fazemos várias coisas ao mesmo tempo. Com tudo isso, nosso repertório se limita e a capacidade de conversa diminui.

Não bastasse o impacto social, as mudanças tecnológicas também promovem um outro impacto nocivo: o impacto ambiental. A necessidade cada vez maior de velocidade e de processamento faz com que o consumo de energia aumente, a necessidade de recursos naturais se amplie e o impacto das aplicações se torne cada vez mais insustentável.

Parece que estamos em um ciclo vicioso, em busca de conhecimento e de contato com os outros, mas escolhemos ferramentas que nos levam na direção contraria a isso, e ainda consomem o meio ambiente.

Em algum momento precisamos parar. Eu acho que deveria ser agora, pois alguns dias atrás recebemos o estudo da NASA (4) que aponta a possibilidade de partes do Brasil serem inabitadas em 50 anos! Cinquenta anos é curto prazo. Não temos mais tempo para esperar.

Precisamos usar nossa inteligência coletiva agora.

Fontes:

  1. Estes dados são da pesquisa de Arthur de Faria, publicados no livro Porto Alegre uma biografia Musical

2. Derek Thompson — Hit makers: Livro Como nascem as tendências

4. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/areas-do-brasil-podem-ficar-inabitaveis-em-50-anos-segundo-estudo-da-nasa/

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gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.