O poder da ignorância
Sempre fico pensando no que nos motiva para aprender. Minha pesquisa na Unisinos é justamente sobre isso: como podemos engajar os estudantes em seu processo de aprendizagem, para que possam a partir disso construir uma autonomia, aprendendo a aprender.
Entretanto, assim como no processo de inovação, muitas vezes criamos barreiras que dificultam esse processo. Quando buscamos inovar, montamos grupos, organizamos processos, e na maioria das vezes, chamamos pessoas que conhecemos, com as quais temos facilidade de trabalhar, buscamos informações de nossos atuais clientes, e assim desenvolvemos uma base para gerar algo novo. Em processos assim, o novo, geralmente, é mais do mesmo. Existe aqui um potencial incremental para transformar, mas não vai além.
O novo, o disruptivo, vem do diferente.
No ambiente acadêmico, em geral, acontece a mesma coisa: montamos semanas acadêmicas, convidamos palestrantes que são referência nos temas que pesquisamos e temos um foco em aprofundar o conhecimento. Quando interagimos com essas pessoas, que estão no mesmo campo de estudo que nós, avançamos um pouco, em um processo de ganhos verticais de conhecimento, mas novamente de maneira incremental. Talvez por isso que em muitos congressos e seminários de nossa área especifica, tenhamos aquela sensação: “não teve nenhuma novidade aqui”.
Mas se é assim, como gerar inovação na academia? Como pensar algo novo no campo de atuação de cada um de nós?
Refletindo essa semana, reforcei uma antiga percepção pessoal, de que um dos melhores caminhos para inovar, ou para questionar nossos modelos mentais, ou ainda para transformar o nosso fazer em nossa área de ação, é abraçar a nossa ignorância para além dos espaços em que vivemos, pesquisamos, habitamos.
Para realmente inovar, precisamos abrir o olhar e abraçar a perspectiva do outro. é nesses cruzamentos de possibilidades que surgem do espaço novo, da interação, da transversalidade que se forma com olhares múltiplos, que surge a novidade.
Foi assim que me senti ontem no evento Ecosys (un)Summit.
Quando o grande amigo Cesar Paz me chamou pela primeira vez para discutirmos o conceito de um novo evento, que tentaria quebrar a lógica dos “summits”, confesso que fiquei um pouco preocupado: um evento que deveria unir ciência, arte e espiritualidade. A primeira questão dele foi se eu achava que os Jesuítas abraçariam esse conceito. Sobre isso, não tive duvidas: o Pe. Sérgio, o Pe Ivo, ficariam muito felizes em promover algo que buscasse no sincretismo cultural que temos, uma transformação mais abrangente, humana e social. Mas eu estava um pouco preocupado: como seria um evento com tantas perspectivas distintas? Até que chegou o dia.
O evento iniciou com a Lu Bazanella, grande profissional e artista, e minha parceira para apresentar o evento. No inicio, ela e o marido, Caio, fizeram uma atividade com o público com foco em ressonância, que colocou todos que ali estavam dentro da vibração necessária para abrir o olhar e aprender todo o dia. Foi fantástico. Depois eu subi ao palco para fazer a apresentação junto com ela. Foi nossa segunda experiência juntos, e mais uma vez conseguimos nos conectar de uma maneira única, algo difícil de explicar, para abraçar cada uma das perspectivas que estavam no palco.
Logo a seguir, tivemos a fala da Lúcia Torres. A perspectiva ancestral apresentada por ela, resgatando um olhar coletivo e feminino e perpassando a história, apontando para um futuro ancestral, foi fantástica. Ela colocava em perspectiva um olhar diferente para a compreensão da ciência e abria espaço para todos que viriam a seguir.
A Kananda Eller, conhecida na internet através do perfil @deusacientista, seguiu o evento trazendo a sua perspectiva para responder a questão: a ciência é neutra? A apresentação dela trouxe para a pauta a ideia de método cientifico e também momentos históricos nos quais a ciência mostrou o seu potencial de aplicação positiva e negativa.
A manhã avançava com esta construção a partir da ciência quando tivemos o primeiro debate, que teve como mediador o Cesar Paz, com a presença da Negra Jaque e da Mãe Bia. A ideia do Cesar nesse painel foi descentralizar o debate colocando protagonismo e voz na realidade das pessoas e contextos distintos de territórios periféricos.
Esse foi um momento mágico.
A Negra Jaque com a força de sua história, de suas ações e de sua música, deu uma aula sobre como ser de fato alguém ativo na transformação das comunidades. A Mãe Bia, contando um pouco de sua história e de seu impacto na comunidade, mostrou para nós a potência, a força de uma mulher negra, que vive na periferia e que transforma todo dia a vida de muita gente. O painel foi aplaudido de pé.
A manhã fechava com muito debate, com variados olhares e perspectivas, e com minha compreensão ampliada do que aprendi, do que preciso aprender, de minha ignorância sobre muitos dos elementos que fazem parte de nosso dia a dia.
A tarde iniciou com um painel que havia ficado sob minha responsabilidade: tínhamos no palco o Pe. Ivo, professor da Unisinos, o Irmão Marcelo Barros, reconhecido em toda América Latina pelas suas ações com movimentos populares, em especial o MST, e a amiga Lucia Pellanda, reitora da UFCSPA.
O Pe. Ivo abriu emocionado, dizendo que era a primeira vez que estava ali no palco, embora tenha participado da construção do espaço. O Pe. Ivo foi vice-reitor da Universidade e uma pessoa que reconheço como a liderança que busca unir pessoas com diferentes olhares, criando um potencial coletivo de futuro. Ele está celebrando 50 anos de Unisinos e compreendeu a presença dele nesse painel como um presente. Fez uma fala potente e fizemos um momento de silêncio para as vítimas das guerras que destroem nosso planeta. O Ir. Marcelo fez uma fala fantástica, trazendo para a pauta os tipos de educação, a perspectiva do bem viver, e um olhar latino americano que transforma nossa compreensão das realidades e também da ciência. A Lucia colocou na pauta o seu olhar sobre Amor e Ciência, apontando para essa conexão, fundamental para a vida em sociedade. Trouxe exemplos de desinformação sobre a pandemia e mostrou a responsabilidade que temos para construir valor coletivo, com um olhar integrado e sistêmico. O painel foi fantástico. Estava aberta a tarde de debates.
Depois do painel, tivemos a fala da Lua Couto. Eu havia encontrado ela um dia antes, e tinha ficado evidente para mim a potência do olhar dela e a importância da sua compreensão sobre o futuro, os pluriversos, as possibilidades que temos enquanto coletivo. A frase que apontava em um de seus slides “nasci na Amazônia e carrego mapas de lutas e confluências”era uma síntese do que trazia para nós, a partir de uma perspectiva única. Foi um momento inspirador.
Depois da Lua, tínhamos um último painel com a Monja Kokai e o artista Xadalu. A Monja Kokai trouxe seu foco a partir da compreensão do budismo apontando para uma perspectiva múltipla de olhar que aponta para o reconhecimento do eu, e depois de nosso papel em sociedade. Xadalu, a partir da cosmovisão do povo Tupi Guarani contou um pouco de sua história e a partir de dois mitos do povo mostrou um pouco de sua obra. Foi uma fala única, onde cada palavra que ele disse abria algo novo no meu olhar. Parecia que novos caminhos, novas possibilidades se construíam a cada segundo que passava de sua fala.
Para fechar, tivemos um show de uma hora, com um dos meus artistas preferidos do Brasil: o Vitor Ramil. Ele entrou no palco apenas com seu violão e trouxe um setlist muito conectado com o evento. Cantou músicas que todos conhecemos, como loucos de cara, ramilonga, estrela, estrela, mas foi na sua versão de Tierra, música maravilhosa de Xoel López, que senti todas as conexões possíveis do evento. Essa frase da letra ilustra isso: “e eu tento cada dia ser tudo o que havia imaginado, e descubro que a vida sempre guarda algo”.
O evento teve ainda momentos únicos como o Tom Zynski cantando a música feita para libertarem a baleia Corky, que está em cativeiro e chegou aos 50 anos. Teve também o videoclipe da Cristal, com a presença do Fernando Magano com seu hip hop sensacional. E o Daniel Conforto declamando poesias no palco, criando interação com o público.
Um momento único, de cultura, ciência, arte e espiritualidade.
Um momento de sentir e de celebrar nossa ignorância, de sentir as possibilidades de aprendizagem que nascem do novo, do diferente.
Sem momentos assim, paramos. E parados, não evoluímos, somos engolidos pela nossa ignorância.
O Cesar Paz, é um cara inspirador. Um inquieto que está sempre tentando trazer esse sentimento e esse movimento para todos nós, conseguiu através desse evento nos desacomodar, nos deixar um pouco fora do eixo, para pensar nas possibilidades que temos quando novas conexões nascem. Quando reconhecemos o outro, quando vemos que os limites que temos para o nosso mundo são fronteiras que se esfarelam quando abrimos nosso olhar. Sempre existe mais, e esse mais é maior do que o que podemos enxergar. Abrir o olhar é necessário. Abraçar nossa ignorância, o caminho. Aprender, o resultado. Mas precisamos usar esse aprendizado para transformar, ai sim estaremos em um ciclo de impacto coletivo e de transformação. é disso que precisamos.