Nostalgia

gustavo s de borba
6 min readOct 28, 2023

Um texto novo, complementado por algumas lembranças

Esses dias eu estava falando sobre o uso da tecnologia em aula e um dos alunos comentou “não consigo nem imaginar como era a vida sem smartphone”. Fiquei chocado com essa expressão: tem gente que não viveu sem um supercomputador no bolso, e fiquei pensando se deveria contar para ele. Me segurei, pois naquele espaço um discurso assim seria pura nostalgia, um grito no vazio que se forma quando o silêncio se projeta num mundo com toda tecnologia possível.

Mas fiquei pensando nisso… e assim nasceu esse texto.

Mas antes de falar sobre isso, busquei mais informações sobre a realidade que vivemos hoje. Qual o real impacto da tecnologia?

Segundo a pesquisa Panorama, que foi desenvolvida pela Mobile Time e Opinion Box, quase metade (44%) das crianças no Brasil, de zero a 12 anos, possuem seu próprio smartphone.

Essa informação é complementada pelo fato de a população mundial ter hoje praticamente um terço das pessoas nativas digitais (32%).

A relação destas pessoas com o celular, pode ser em certa medida equivalente a relação que eu tinha com a televisão e meus pais com o rádio.

Mas independentemente do tipo de mídia, sempre temos possibilidades positivas e negativas a partir delas.

Com a televisão, por exemplo, tínhamos uma curadoria pré-pronta, que apontava o mesmo conteúdo para todos. Isso limitava nossas escolhas, mas criava o combustível para as conversas: tínhamos a mesma base e acesso.

Antes, com o rádio, os limites de não poder ver o que estávamos ouvindo criavam muitas restrições, mas permitiam a explosão de nossa imaginação, buscando criar a cena que se desenrolava nas vozes que vinham pelas ondas do rádio.

Com os smartphones, as coisas mudaram. Hoje, temos um smartphone para cada pessoa no mundo, embora metade da população global tenha os aparelhos. Isso reforça a desigualdade de acesso que temos. O smartphone permitiu, através do acesso a rede, uma mudança fundamental em nossa relação com a mídia: a partir deste fenômeno tecnológico passamos a ter acesso a conteúdos e agora podemos definir, a partir de nosso interesse, o que queremos acessar. Se antes a novela das 8 era o que trazia todos para a sala, hoje os vídeos caseiros, de amigos, o acesso as redes sociais, todos estes processos que “nos conectam com o mundo”, nos levam para o quarto.

Mas na realidade, quando iniciei esse texto, minha intenção não era contar a história da tecnologia através de 3 mídias (radio, tv e celular). Minha intenção era contar como era a vida, sem a curadoria individual de conteúdo e sem o afastamento social tecnológico. Vou voltar para isso, embora os parágrafos acima possam abrir debates futuros.

A rua era um Canvas

A rua era um Canvas, em branco, para a imaginação das crianças. Após a escola, esse espaço se tornava território dos jovens, e em muitos locais os carros precisavam parar para pedir passagem. Jogávamos futebol usando os paralelepípedos como goleira, colocávamos uma rede de vôlei conectada nos portões das casas, atravessando a rua, brincávamos de pegar, de alerta, e vários outros jogos.

Explorávamos os espaços do pátio dos vizinhos ou da rua. Não tinha uma árvore que não virasse um esconderijo nas brincadeiras de esconde-esconde.

O limite tecnológico dos brinquedos fazia com que nossa imaginação, assim como nos tempos do rádio, criasse as possibilidades. Bonecas e bonecos duros, com articulações limitadas se transformavam em personagens de um enredo criado na interação entre as crianças, que desenvolviam a narrativa ali, improvisando possibilidades de relacionamento.

Era mais bicicleta, carrinho de lomba, joelho ralado, dente quebrado.

A festa geralmente acabava com as mães mandando uma mensagem, ou melhor, indo até o portão de casa para gritar: “vem jantar, está na hora”. E aí começava o segundo capítulo: a hora de tomar banho, jantar e fazer a tarefa da escola, acessando os pais e os poucos livros que tínhamos. As dúvidas, tínhamos que levar no outro dia para a escola, pois a tecnologia limitada só permitia que falássemos via telefone discado, e ligar para um amigo para perguntar algo era muito caro.

No outro dia, o ciclo se repetia: aula, rua, casa. Na escola, no recreio, brincadeiras coletivas: trem de ferro, pegar, entre várias outras.

O grande veículo de comunicação e de conexão era, pasmem, a conversa humana e presencial. Para pessoas tímidas como eu, isso era muitas vezes um limitador, especialmente nas reuniões dançantes de final da tarde. Mas a necessidade de conexão através da conversa fazia com que todos buscassem espaços de diálogo.

Obviamente, tínhamos muitas dificuldades que foram de certa forma eliminadas com a tecnologia. Mas era menos lixo, menos tempo vazio, mais conexão com o outro, mais conversa, mas imaginação.

Tudo isso acontece hoje, e para quem é nativo digital se revela de maneiras distintas. Provavelmente minhas filhas podem escrever um texto apontando coisas maravilhosas relacionadas a tecnologia. Mas cabe a mim, falar do meu lugar e usar esse espaço de tecnologia, para lembrar. A lembrança fortalece nossa capacidade de questionar, mas não pode nos fechar para o novo. E esse texto deve ser percebido assim: um olhar para trás, para ajudar na crítica de hoje, sem excluir todas as possibilidades que temos, usando a tecnologia a nosso favor.

As lembranças complementares: diário da pandemia

Árvore

Subir em árvore, só isso já era sinônimo de brincar. Machucar as mãos, os joelhos, eram parte do processo. Ficava mais fácil quando usávamos um sapato adequado como um kichute, mas dava para subir até de chinelo de dedos, dependendo do tipo de árvore. As minhas lembranças de infância envolvem brinquedos analógicos e interação na natureza. Lembro que a sensação de subir na árvore era desafiadora, mas a recompensa era a possibilidade, para alguém pequeno e que passava todo dia olhando para cima para conversar com os outros, de olhar para baixo e enxergar tudo. Muitas vezes subíamos, íamos de um galho para outro mais forte, e quando nos dávamos conta não tínhamos pensado na atividade complementar a subida: a descida. O desafio era maior, pois enquanto subimos, temos a força do corpo a nosso favor, quando descemos, temos o peso do corpo contra nós. Nas diferentes casas que morei, sempre tinha uma árvore que era como um playground, mas a que me lembro mais é a da casa azul. Ficava na frente da casa, e eu podia subir lá com o Falcon e imaginar vários planos para que ele salvasse as pessoas que passavam pela rua e que corriam o risco de serem atacadas pelo Torak. Na década de 70 e 80, os brinquedos eram evoluções incrementais do que existia nas décadas anteriores. A tecnologia era limitada. Bola, bicicleta, boneco, carrinho, árvore, barraca, rua. Essas eram as palavras-chave para um enxoval completo para as crianças daquela época, que revelavam a alegria e as possibilidades destes objetivos todos na interação com os amigos. Sem amigos era quase impossível brincar.

Casa azul

Essa memória é daquelas que temos e não entendemos bem por que, nem como. Eu estudava no jardim de infância no girassol. Eu tinha uns 4 anos, e lembro de caminhar de minha casa, na rua Aureliano de Figueiredo Pinto, até a escola, com meu avô. Íamos caminhando e voltávamos caminhando, quando minha mãe não podia me buscar. Uma das coisas mais legais que eu fazia nessa época era aproveitar as calçadas que tinham pinheirinhos enfileirados ao lado esquerdo, para sair correndo na frente do vô e me esconder entre os pinheiros, tentando assustá-lo quando passasse por mim. Sempre imaginei que fui bem-sucedido nesse processo, até me dar conta que as vezes fingimos a surpresa ou outras formas de expressão, para alegrar as crianças. Fiz muito isso com minhas filhas, sempre lembrando desses momentos com o vô. O tempo passou e comecei a estudar no Coração de Maria. Eu tinha 5 anos quando entrei na primeira série — era um pouco mais novo do que todas as crianças, o que dificultou um pouco ao longo de toda minha vida escolar a construção de amizades. Lembro que no início, eu ia acompanhado para a aula, mas com 8 anos eu já estava autorizado a atravessar a floresta que tínhamos na frente de casa até entrar pelos fundos de um mercado e sair na rua medianeira, quase em frente ao colégio. Todo dia era uma aventura, pois eu imaginava as árvores se mexendo, os movimentos no meio daquela área verde, e avançava cauteloso. A volta era mais fácil. Acho que não me dava conta dos potenciais perigos, pois queria chegar logo em casa, almoçar, e começar a brincar. Meus dias eram meio repetitivos, mas não monótonos: aula de manhã, almoço, sessão da tarde na tv, brincadeira na rua a partir das 16, jogo de bola no final da tarde até voltar para jantar, pelas 19 horas. Nesse período de atividades na rua, a palavra-chave era liberdade. Parecia mágico que as 4 ou 5 casas da rua tinham crianças mais ou menos da mesma idade que eu e minha irmã. Eu e meus amigos brincávamos cada dia em uma casa, aproveitando os espaços externos, as árvores, brinquedos do pátio, para jogar, brincar com Falcon e conversar. A minha infância foi um período de aprendizado, todo dia.

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Written by gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.

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