Meu Lugar

gustavo s de borba
4 min readMay 27, 2024

O antropólogo francês Marc Augé, que faleceu aos 87 anos em 2023, é reconhecido por, entre outras coisas, ter definido o termo não-lugar.

Um não-lugar é um espaço que usamos, dividimos, mas ao qual não pertencemos. Espaços onde passamos, onde somos anônimos e que acabam não tendo uma real conexão com nossa história. Não lugares podem ser considerados, em geral, supermercados, hotéis, shoppings, espaços de passagem.

Esse conceito se coloca como um perigo para o tempo que vivemos. Nessa crise atual que estamos enfrentando aqui no Rio Grande do Sul, um dos grandes desafios de todos nós é desenvolvermos formas de conexão, de pertencimento, de bem-estar. Se pensarmos, por exemplo, nos abrigos, é fundamental que o afeto, o cuidado, a busca de conexão autêntica, supere a complexidade da falta de privacidade, da insegurança, do sentimento de não pertencer. Acompanhei este processo a distância e, embora as realidades destes espaços sejam muito distintas, me parece que esse foi um dos grandes pontos de cuidado dos voluntários e instituições que estão presentes: como desenvolver nos abrigos, potencialmente um não lugar, um senso de lugar, de pertencimento, de segurança, de afeto, de lar.

A experiência obtida nestas primeiras semanas da crise é fundamental para o que temos logo a nossa frente: o grande desafio de repensar a potência de espaços aos quais pertencíamos, e que foram apagados, se tornando potencialmente não lugares.

Me parece que um dos grandes desafios aqui é a reconstrução das escolas.

Existem inúmeras publicações que apontam para a ideia do terceiro professor: temos a família, os professores, e o terceiro e potencial professor é o espaço. Esse espaço precisa ser projetado para dar sentido a pedagogia e prática promovida na escola e gerar um senso de coletivo.

Muitas famílias, muitos professores, foram impactados por esta catástrofe que ainda está presente aqui no RS, mas os impactos vão ainda além: boa parte dos espaços de pertencimento e de educação foram destruídos.

Ontem, a partir de um convite da Leticia e da Liana, fui com a Aninha participar de um mutirão de limpeza em uma escola municipal de educação infantil aqui de Porto Alegre. Chegamos lá e trabalhamos durante a manhã com outros 10 voluntários, incluindo a diretora e pais e mães, removendo tudo que estava dentro da escola: camas das crianças, móveis inchados pela água, diversas resmas de papel A4, que ampliaram seu volume pela retenção do esgoto em cada uma das páginas que ali estavam, mesas de trabalho, brinquedos, equipamentos.

A tristeza de ver espaços de alegria, de crescimento, resumidos a lama, sujeira e um cheiro que mistura esgoto, barro e mofo, é indescritível.

À medida que desmontávamos alguns dos móveis para carregar, dava para ver, voando entre as paredes sólidas e encharcadas, pequenos trabalhos das crianças sobre, por exemplo, como evitar a dengue.

A cada sala, uma surpresa. Logo na entrada dava para ver os arquivos com todas as informações dos alunos, agora carregados de água, ferro e sujeira.

Cada criança que estuda nas diferentes escolas afetadas tem potencialmente o seu registro impactado pela catástrofe que vivemos.

Quando acabamos nossa participação no mutirão, pensamos na importância de estarmos presentes nesse momento e ajudar, mas também nos demos conta da complexidade que impacta todos nós: esta é uma escola dentre mais de 500 escolas afetadas, em uma realidade que, quando avança para além da educação, revela a destruição de empresas, casas, bares.

Aquele lugar, assim como muitos outros, nesse momento deixou de ter características de lugar, pois se transforma em um espaço que não nos convida para ficar, para estar, para pertencer.

Esse desafio estará presente em todos os espaços que habitamos, nos lugares que convivemos, nas áreas nas quais nos reconhecemos.

Os espaços precisam gerar pertencimento.

Como sociedade, precisamos de uma mobilização única para essa reconstrução a partir de elementos que promovam aquilo que é fundamental para aprender: senso de pertencimento, bem-estar e engajamento.

Nossas escolas precisam de todos nós.

é hora de voltarmos, tendo filhos ou não, conhecendo ou não a realidade da escola que fica perto de nossa casa.

Precisamos lembrar do que vivemos nesses espaços e garantir que as crianças que ali habitam, vão voltar a se sentir em casa, em grupo e seguras. Isso é condição básica para educar e para transformar nossa realidade.

Cada criança é potencialmente um agente transformador da realidade absurda e destruidora que criamos, como adultos.

Precisamos reprojetar, repensar, compreender que viver é um ato coletivo que envolve olhar, pensar e ser para e com o outro.

Precisamos ressignificar nossa relação com a natureza, repensar nosso conceito de desenvolvimento e voltar a crescer como humanidade.

A escola é esse lugar, esse espaço transformador que pode gerar os resultados que nos garantem um futuro.

Mas para isso, precisamos reconstruí-las em um esforço da sociedade, dos governos, das empresas.

Sem isso, não há futuro.

Olhe em volta e encontre esse lugar. O terceiro professor. O espaço que pode nos transformar.

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gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.