Memórias

gustavo s de borba
3 min readJun 4, 2024

No recente desastre que tivemos no RS uma das coisas que mais me chamou atenção foram as entrevistas feitas com pessoas que perderam tudo dentro de suas casas. Elas lamentavam a tragédia, a perda dos bens materiais, mas especialmente as lembranças físicas que se foram com a enchente: fotos, albums, diários, que eram, de alguma forma, a tangibilizaçao da memória de cada um.

Cada retrato consolida um momento na história das pessoas, que ativa lembranças, reconstrói tempos que estavam esquecidos e também sentimentos que estavam guardados.

O mais interessante é que ativamos muitas memórias que, em certa medida, nós mesmos construímos. Ver, por exemplo, a foto da nossa mãe ainda criança, traz uma conexão com um momento anterior a nossa existência, mas de alguma forma, faz parecer que estávamos lá. Imaginamos o que acontecia no momento da fotografia, e também o que está escondido para além das bordas daquele retrato.

Cada foto, cada cartão de aniversário, cada carta, cada bilhetinho, nos leva para um lugar que guardamos e que dificilmente acessamos: um lugar de conexão com nós mesmos e com emoções que nos construíram, emoções que definem quem somos.

Fiquei pensando nisso e lembrei de uma caixa que temos aqui em casa com cartas antigas que recebemos de amigos, especialmente durante o período da faculdade, até o nascimento de nossa primeira filha (de 1990 a 1999). Ontem, abrimos esta caixa e começamos a ler cartas de pessoas que passaram por nossas vidas e por um longo período demonstraram todo o afeto através da explicitação do que sentiam, que se revela nestas cartas.

Escrevíamos muito, especialmente quando nossos amigos se mudavam para trabalhar ou estudar em outra cidade. Escrevíamos em todos os formatos. Cartas coloridas, pequenas, grandes, na vertical, na horizontal, com fotos, sem fotos. Contávamos novidades, trocávamos de cor, um pouco de drama, alguns desenhos, uma ou outra fofoca, mas na essência estava o ato de se doar naquele momento, para se conectar com alguém importante para nós.

Escrever para alguém era uma ação de amor. Algumas horas sentado, com uma caneta na mão, contando novidades e, em certa medida, conversando com nós mesmos. Muitas das cartas mostram um processo de reflexão na ação da escrita, pensamentos que vão e vem, coisa que hoje em dia, como só escrevemos em um computador, certamente apagaríamos.

Mas nas cartas não era assim. Nas cartas o nosso raciocínio ia se desenvolvendo a medida que escrevíamos, e podíamos ver, ler e sentir a montanha russa de emoções que se revelava a cada linha.

Além da alegria da conexão, a incerteza do retorno era algo bastante presente também. Se hoje, quando mandamos uma mensagem, não conseguimos esperar minutos pela resposta, imaginem como era alguns anos atrás, quando esse processo levava 10, 15, 20 dias.

A espera tornava a chegada da resposta um momento épico, um momento de ver o impacto das nossas palavras nas pessoas que gostávamos, mas sem algo fundamental: uma cópia do que escrevemos. É como se mandássemos um email com 3 ou 4 páginas, e quinze dias depois recebêssemos a resposta sem a nossa mensagem original.

Relendo as cartas que temos em casa, me dei conta de como a memória nos impacta. Lemos cartas que não lembrávamos que tínhamos recebido. Falamos com amigos que não lembravam que tinham escrito tais palavras. Talvez por isso seja tão importante manter esse registro, essa espécie de tesouro, que está lá, guardado e que pode em certa medida ativar lembranças, ou mesmo um sentimento de reconexão com quem ficou pelo caminho.

Lendo, percebi que éramos poetas.

Todos expressávamos o amor e amizade um pelo outro, sem medo de ser mal interpretado. Tínhamos relações autênticas que se definiam pelas linhas escritas em pedaços de papel que transitavam entre cidades para chegar ao seu destino.

Lembranças apagadas de nossa memória, mas que estão ali, guardadas em alguma gaveta, esperando pela possibilidade de existir novamente.

Tudo isso é possível e faz sentido, quando temos a possibilidade de abrir a gaveta, de abrir a caixa, e de nos reconectar com essas lembranças.

A grande questão é que, hoje, essa possibilidade foi de alguma retirada de milhares de pessoas no nosso estado. Muitas das memórias tangíveis e analógicas ficaram para trás, ou desapareceram pela força da água. Memórias que precisam ser reconstruídas a partir do que lembramos.

P.S.: Quando eu estava finalizando este texto acabei encontrando, via pacto alegre, uma postagem do Núcleo de Antropologia Visual da UFRGS (www.ufrgs.br/navisual) dizendo que provavelmente podem ajudar a salvar as fotos que molharam na enchente. O WhatsApp deles: (51) 99887–4374. Essa informação é de 2 de junho de 2024. Fica a dica!

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gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.