Em que mundo vivemos?
Texto exploratório sobre os diferentes "versos" em que vivemos — escrito em 9/2/22
Eu estou a cada dia mais chocado com a capacidade humana de desenvolver o que não precisa, gerar lucros com isso, e sempre impactar grupos reduzidos, e os mesmos grupos.
Vivemos ainda uma pandemia, e nesse período as desigualdades aumentaram absurdamente. Em termos educacionais, por exemplos, vimos aumentar em 66%, segundo pesquisa do todos pela educação, o número de crianças entre 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever (https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/cresce-em-66-numero-de-criancas-com-6-7-anos-que-ainda-nao-sabem-ler-ou-escrever-diz-todos-pela-educacao-25384693). Esses números geralmente acabam sendo puxados por crianças em situação mais vulnerável.
No contexto educacional, a pandemia nos desafiou e vimos universidades e escolas — especialmente no setor privado — aderirem a diferentes plataformas para manter um processo de ensino online. As realidades são muitas, mas acompanhei a experiencia de mais de 1000 professores e muitos deles, a cada aula, buscavam alternativas, possibilidades novas, para transformar o processo de ensino e aprendizagem e gerar engajamento. Esse caminho, infelizmente, impacta um grupo restrito de alunos, que tem acesso especialmente as escolas privadas do nosso país. Com todo esse processo de transformação, tenho certeza que o aluno que volta para o ambiente presencial, não encontra a mesma escola. Deve encontrar novas possibilidades.
Na minha opinião, deveríamos neste momento construir parcerias, conectar público e privado, aprender com os outros, identificar exemplos positivos e mudar nosso sistema como um todo. Essa prática é bem descrita por autores como Fullan e Quinn, no livro Coherence, quando trazem a ideia de transformação de sistemas inteiros, buscando a construção de foco e direção, colaboração entre todos, aprendizagem profunda e responsabilização individual e coletiva (Fullan e Quinn, 2015).
Se avançássemos assim, como país, como educadores, mostraríamos que estamos sim preocupados em reduzir estas desigualdades e construir caminhos coletivos para todos em nosso país.
Esse é o nosso universo, um espaço plural, que precisa considerar diferentes realidades, diferentes contextos, diferentes culturas. Na realidade, a partir dos estudos de Kothari et all (2021), podemos pensar nessa perspectiva ecossistêmico da educação como um pluriverso: um espaço que reconhece a diversidade, as alternativas dos diferentes povos, muitas realidades compondo um mosaico que é nossa realidade.
Se pensarmos nisso, nas possibilidades que advém do reconhecimento do aprendizado ecossistêmico, nas redes educacionais público e privadas, e ainda reconhecermos a necessidade de transformação curricular a partir de um olhar pluriverso, podemos construir um futuro mais justo e coletivo.
Acredito que este seja o grande desafio que a pandemia nos coloca: desenvolver um processo de educação plural e que de conta de abrir possibilidades para todos. Esse é o resultado desse período, precisamos aprender e pensar coletivamente, buscando o melhor para todos.
Mas, na prática, pegamos a trilha errada.
Ao invés de explorarmos este pluriverso, a colaboração, e as possibilidades que temos como um coletivo diverso, buscamos o metaverso.
A curva que nos tira da realidade e nos coloca na Matrix.
A curva que captura o desenvolvimento tecnológico que tivemos ao longo do tempo e nos joga para um espaço onde tudo pode, onde podemos ser o que queremos, e onde podemos inclusive aprender.
Seria perfeito, se fosse real. Espaços assim, podem nos tirar a atenção das mazelas existentes em nossa realidade e podem promover nossa ignorância sobre o que realmente importa, nos levando para um lugar seguro e isolado de tudo que, enquanto coletivo, deveríamos dar conta.
São muitos os argumentos possíveis para defender espaços alternativos. Poderíamos inclusive dizer que em um metaverso, podemos ter uma educação mais barata, e aberta para todos. Sim, é possível.
Mas que educação? Quem tem acesso? Que grupo está representado? Que universo é discutido? Mais bolhas, mais bolhas, mais fronteiras, mais separação, ao ponto de não reconhecermos os problemas reais coletivos, e até individuais que temos.
Como trabalho com inovação, sou adepto da tecnologia. Sei a importância histórica e atual dos artefatos tecnológicos para as diferentes áreas e setores. Mas já vimos também, mesmo na área da educação, que colocar a tecnologia como o elemento principal não é o caminho. Comprar computadores, criar salas virtuais, não qualifica a formação. Pode sim facilitar os processos, se tivermos professores qualificados, uma pedagogia adequada e se construirmos engajamento nos alunos. De outra forma, é um custo que não produz resultados.
No caso especifico do metaverso, vivemos a euforia do momento: “minha empresa fez uma reunião no metaverso”, “tive uma aula no metaverso”. Parece mais um festival de momentos específicos para compartilhar, para jogar nas redes que temos e mostrar que chegamos lá primeiro. Mas como acontece sempre nestes ambientes, continuamos isolados. E isolados, não aprendemos. Aprendemos interagindo, vivendo, nos relacionando.
Minha preocupação neste momento é ignorarmos os aprendizados da pandemia e focarmos nas realidades que nascem como alternativas, mas podem virar o mainstream, o metareal. E isso, anula a diferença. Se a nossa realidade é o metaverso, vamos encontrar caminhos para ficar por ali, buscar o que queremos, fortalecer nossas certezas, nos sentirmos mais “felizes e plenos”. Enquanto aqui fora, nosso corpo morre lentamente.
Mas pegando emprestada a maravilhosa frase da música do Arnaldo Antunes: o real resiste.
O real nos apresenta o diferente, nos causa o incomodo, nos provoca, nos faz ver os problemas sociais que como coletivo nós temos, e quando percebemos isso, estamos aptos a buscar uma transformação. Eu aposto nisso, na nossa capacidade de indignação enquanto sociedade e coletivo. Na nossa capacidade de superar o individualismo e construir bem estar social coletivo. E isso, acontece aqui, ali na rua, na praça, na sala de aula, no escritório. Na vida.
Referencias:
FULLAN, M. and QUINN, J. , Coherence: The Right Drivers in Action for Schools, Districts, and Systems, Corwin Press, Thousand Oaks, CA, 2015.
KOTHARI, Ashish; SALLEH, Anel; ESCOBAR, Arturo; DENARA, Federico; ACOSTA, Alberto. Pluriverso: dicionário do Pós-desenvolvimento. Tradução: Isabela Victória Eleonora. São Paulo: Editora Elefante, 2021.