Carne transgênica? Mais algumas reflexões sobre o “mercado”.

gustavo s de borba
3 min readJan 22, 2024

Hoje fui ao supermercado, e enquanto escolhia uma carne para o almoço, me dei conta que podia classificar, até as carnes, em transgênicas ou não. Alguns dos pacotes possuíam o “t”, elemento que identifica, neste caso, que os animais são alimentados com ração que pode conter produtos transgênicos. Este símbolo é revelado para nós devido ao projeto de lei º 4.908, de 2016.

Fiquei pensando nisso e me lembrando de quantos produtos temos em casa hoje que possuem o “T”, ou que possuem indicação de “alto teor de …”. A ideia de termos acesso a este tipo de informação é fundamental, mas o fato de usarmos este tipo de substância revela potencialmente a capacidade que temos de transformar tudo, inclusive o alimento, em veículo de ampliação de ganhos das empresas.

Por que estou trazendo este assunto para a pauta? Na realidade sigo impactado pela semana intensa que tivemos em Porto Alegre (algumas pessoas permanecem sem luz ainda hoje, dia 22 de janeiro), e por conta disso me parece que é um bom momento para retomar o assunto que sempre atrapalha as ações reais e de ganhos coletivos: a ênfase no mercado.

Dois pontos aqui são primordiais.

No caso dos alimentos, se as transformações potenciais reduzissem os custos para o consumidor e ampliassem o acesso, poderíamos eventualmente ter um argumento para o uso de tecnologia e para os avanços em produzir mais com menos, gerar mais capacidade produtiva, explorar mais cada grão. Mas não me parece ser o caso: com estas transformações nós avançamos em um lado da equação do mercado: o lado das empresas. Mais ganhos e uma potencial redução de qualidade. Mais ganhos e um potencial aumento do impacto ambiental.

No caso dos transtornos que sofremos esta semana, esse debate fica mais explícito: existem setores nos quais é muito difícil ganhar dinheiro. Para isso, temos que adaptar o serviço. Eu acredito que seja o caso em áreas como saúde, energia, educação. Nestes setores, a ideia de repasse destes serviços para empresas com fins lucrativos limita as possibilidades de entrega de qualidade. E precisamos lembrar que toda empresa tradicional tem um objetivo: o lucro, e busca-se ganhar mais com menos. Essa situação se agravou nos últimos anos, especialmente no século XXI com o avanço de um modelo que não se sustenta mais, mas que persiste e reforça a lógica de ganhos para alguns: menos foco nas pessoas impactadas e mais foco nos acionistas.

No caso da energia, é obvio que em determinados espaços o custo de entrega da energia é maior do que o valor cobrado. Da mesma forma também é fácil de perceber, por exemplo, a necessidade de equipes para eventuais falhas. Mas essa lógica, manter pessoas sem uma ação diária, é contraprodutiva e muitas organizações ficam cegas pela busca constante pela produtividade.

Setores estratégicos devem sim ser eficientes, sem dúvida, mas me parece que deveriam ser responsabilidade do Estado. Deveria ser um dever do Estado e um direito do cidadão. Quando vira negócio, aquele recurso necessário se transforma em mais uma área na qual organizações podem buscar um ganho crescente e cada um de nós se torna um número: o cliente x.

Até quando vamos viver desta forma?

Hoje estava lendo o livro “small is beautiful” do Economista E.F. Schumacher, publicado no ano que nasci: 1973. Fico pensando em como o pensamento dele e de tantos outros já era fundamental naquele momento e se torna ainda mais importante hoje: o respeito pela natureza, a compreensão dos motivos pelos quais consumimos, a importância de compreender a relevância de cada um de nós.

Me parece que precisamos de uma transformação a partir de cada um, para buscar ir além desta linearidade crítica que vivemos hoje, onde empresas ganham e nós pagamos.

Na conversa que tive ontem com o Satish Kumar perguntei sobre essa perspectiva que temos hoje, sobre o uso de tecnologia, inteligência artificial e todas as coisas com as quais nos deslumbramos dia após dia e que não fazem grande diferença no que realmente importa. Satish disse que temos no mundo 8 bilhões de inteligências naturais, orgânicas, que estão sendo desperdiçadas. Na minha compreensão, além de estarem sendo desperdiçadas, estão sendo apagadas. Apagadas pela possibilidade do padrão, da busca de ganhos empresariais e pela necessidade de sermos cada vez mais iguais para facilitar a entrega de produtos que servem para todos.

Esse modelo precisa mudar. A nossa diversidade precisa ser celebrada e cada um de nós precisa ser respeitado em seu espaço, recebendo os serviços básicos que proporcionam dignidade humana.

Para isso, uma transformação precisa acontecer, e ela não vai vir pela tecnologia, pelo novo artificial e sintético. Ela precisa nascer no humano, no orgânico.

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Written by gustavo s de borba

Professor da Unisinos na área de Design. Escrevo aqui sobre o cotidiano, em um diário do período de pandemia, com textos de um ano atrás.

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