Ambiguidade
A criatividade é uma competência humana, assim como a capacidade de aprender com o erro. Entretanto, os algoritmos evoluem e a cada dia vemos mais possibilidades tecnológicas de emular nossas competências. O avanço recente do ChatGPT, por exemplo, colocou em debate essa questão.
Para mim, podemos avançar com intensidade e precisão ao longo do tempo, chegando a capacidade de transformar zeros e uns em um contínuo “quase” perfeito, mas nunca chegaremos a "provável imprecisão contínua" do humano. Perfeição não é uma capacidade humana, é um conceito relativo, que pode se transformar em algo pontual, em um estado discreto, quando utilizamos um idioma diferente do humano, como a linguagem de máquina.
Lembro de realizar muitos modelos matemáticos buscando, por exemplo, o mix de produtos perfeito em uma empresa, para maximizar o lucro, ou para minimizar o custo. Isso é possível matematicamente através de técnicas como programação linear, mas bastante difícil de funcionar perfeitamente na realidade, dado que a demanda pelo produto, por exemplo, depende de variáveis humanas. Da mesma forma, enquanto aluno de graduação, tive a felicidade de estudar lógica fuzzy com professores que retornavam de seu doutorado e traziam esse debate e alguns papers internacionais, em uma época anterior as bases de dado online. Relendo o livro Team Human de Rushkoff, relembrei a partir de seu texto que a lógica fuzzy permite avançarmos em uma mudança de perspectiva na lógica binaria computacional, mas ainda assim, não representa o continuo imprevisível das possibilidades que inauguramos a cada dia que tomamos uma nova decisão.
Alguns meses atrás, eu estava em um debate com professores em São Paulo, falando justamente sobre isso, e um dos professores me provocou dizendo algo como: quer dizer que temos aqui um gênio do design, que a cada decisão pensa algo novo? Não considera o histórico?
Fiquei até constrangido em responder, mas era necessário. Obviamente carregamos nosso histórico de decisão, nossos modelos mentais, nossas capacidades desenvolvidas na vida pessoal e profissional. Mas no momento da decisão, além de tudo isso, somos impactados por muitas variáveis distintas, como por exemplo, o programa de rádio que ouvimos de manhã o “eu te amo” para a pessoa com a qual vivemos, a buzina no trânsito, o jornal ou site que acessamos, a proximidade ou não das férias. Tudo isso está conectado em um emaranhado de pensamentos e possibilidades que faz com que a decisão seja sempre nova, e não algo predizível baseado em todas as decisões anteriores. Assim, não é uma decisão que podemos prever baseado no melhor e mais potente banco de dados do planeta.
De qualquer forma, a cada dia que vejo e interajo mais com possibilidades e práticas também inauguradas pela tecnologia, lembro da frase do Andy: “não existe algoritmo para a criatividade”.
Recentemente eu estava com o Andy em um workshop no Canadá e eu trouxe essa frase na apresentação que fazia. O Andy me questionou: “será que isso ainda é verdade?”. Eu respondi que sim, que sempre será, mas saí dali pensando muito nisso.
Será que nossa última capacidade, aquilo que nos define como humano, pode um dia ser emulado, programado?
A frase que até então me acalmava, me confortava em momentos de tensionamento, agora me assombrava.
Por alguns meses li bastante sobre o tema, busquei mais referências sobre as novas tecnologias, interagi com IA em sites para montar palestras, para montar textos ou para responder perguntas cotidianas. Nada disso apontava para uma ruptura da veracidade da frase, mas também não me trazia qualquer reforço ou certeza de que essa mesma veracidade teria vida longa.
Até o dia em que ouvi o artista Paul Wong falando na formatura dos alunos da Emily Carr, uma das melhores escolas de design e arte do Canadá.
Wong contou como se tornou um artista e o impacto de ter visto em uma pequena fotografia em um jornal, ainda quando adolescente, o quadro Guernica, de Picasso. A partir desse momento, o artista diz que teve a certeza que perseguiria esse caminho.
Em seu discurso, ele descreve a ambiguidade como a grande característica da arte. Ambiguidade que nos permite refletir sem barreiras, que não amplia o olhar e permite a leitura diferente, a partir de cada um de nós. Além disso, Wong trouxe a perspectiva de que em seu trabalho “a comunidade é o seu mentor”.
Essas duas questões, ambiguidade e o senso de comunidade e pertencimento (que coloco aqui com uma certa licença poética), levaram meu pensamento para textos com os quais interagi nos últimos anos.
Lembrei do texto Design for Belonging da Susie Wise, que reforça a importância do senso de pertencimento para o desenvolvimento de soluções coletivas, e também do livro Team Human, de Douglas Rushkoff, que apresenta a humanidade como um esporte em equipe. Para esses dois autores, o senso de comunidade é propulsor de novas possibilidades coletivas.
Ambiguidade e senso de comunidade.
Como emular isso? Como programar máquinas para isso? Ou ainda, como desenvolver um aprendizado de máquina que seja capaz de evoluir, por exemplo, no sentimento transformador e constantemente em mudança, que é a capacidade de colaborar e atuar coletivamente, para o bem coletivo?
Me parece muito difícil. Mas sem dúvida, pode ser possível, especialmente a partir da uniformização.
Como diz Rushkoff, emular comportamentos padrões, avançar na ideia de que devemos nos enquadrar em um grupo, na perspectiva de que a diversidade não é relevante, isso todo remeta a padrões nos quais somos, sem dúvidas, menos importantes. Nossa relevância desaparece e as máquinas podem sim ser muito melhores do que nós.
Mas não são, quando pensamos nos reais conceitos de comunidade e ambiguidade.
Finalizo esse texto trazendo uma última ideia de Rushkoff sobre a noção de ambiguidade. Para o autor, no livro Team Human,
“O Time Humano tem a capacidade de tolerar e até aderir à ambiguidade. As coisas que tornam nosso pensamento e comportamento confusos ou anômalos são nossa maior força e nossa maior defesa contra a certeza mortífera da lógica da máquina.”
A ambiguidade é o que torna a arte, de fato arte. Talvez seja também a ambiguidade o que cria surpresa a cada novo movimento humano, a cada nova conversa. Me parece que quando pensamos em criatividade, em arte, e colocamos nessa construção as possibilidades incertas que derivam de nossa ambiguidade, temos algo único. Quando inserimos tudo isso no contexto coletivo, de construção do melhor para todos, surge algo incansável para as máquinas.
Para isso, não existe algoritmo.
Autores: Gustavo Borba e Ione Bentz
Referências:
Emily Carr University: Convocation 2023: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=tmmq6tkQMqk&feature=youtu.be
Rushkoff, Douglas. Team Human. WW Norton & Co, 2019.
Wise, Susie. Design for Belonging: How to Build Inclusion and Collaboration in Your. Ten Speed Press, 2022