A trilha sonora
Embora correr seja um momento de reflexão, de conexão comigo mesmo, eu prefiro que essa conexão aconteça embalada por uma boa trilha sonora. Algumas vezes, dependendo do dia, corro ouvindo um audiobook, ou um podcast, como o Café da Manhã, ou alguns programas de notícias. Mas em corridas mais longas, sempre corro ouvindo música.
Eu amo música, e acho que sem trilha sonora, nossa vida é silêncio.
No meu caso específico, vejo em tudo um pouco de música: a música que eu ouvia depois do almoço quando adolescente na rua Pe. Anchieta, a música que tocava quando beijei a Aninha pela primeira vez, a música do casamento, a música que coloquei no nascimento de cada uma das minhas filhas. Quase toda semana descubro uma música nova e mostro para as gurias aqui em casa. Acho que esse foi um dos motivos pelos quais elas desenvolveram uma vontade de tocar instrumentos e de ouvir música. Hoje, mais da metade das músicas que eu escuto, são indicações delas. Eu nunca teria acessado Kendrick Lamar, Kamazi Washington, Bleachers, Ingrid Michaelson, Birdy, Taylor Swift, se não fosse por elas.
Por isso, posso dizer que trilha sonora é coisa séria aqui em casa.
Quando me preparava para a primeira meia maratona, eu estava muito animado para montar a trilha sonora: uma hora e 40 minutos projetados para embalar cada momento, desde a largada intensa, a adaptação do tempo e do esforço durante a corrida e o resgate da força no final. Montei esta playlist com a Clarinha. Naquela época eu corria ouvindo músicas um pouco mais aceleradas, então Iron Maiden, Ac/Dc, Portugal. The Man, iniciavam a playlist colocando um ritmo intenso, quase insano. Na sequência, Imagine Dragons, Beatles, e outras bandas de rock que me ajudavam a cadenciar o tempo. No final, bandas como Florence + the Machine me davam um gás para romper a linha de chegada.
A trilha que montamos em 2018 para minha primeira corrida ficou ótima, o problema é que eu não sabia que nos primeiros 2 km, é muito difícil correr quando milhares de pessoas saem juntas na mesma direção e as pistas da avenida são o gargalo. Eu tentava acelerar no ritmo das batidas do baixo do Steve Harris, mas encontrava o calcanhar de alguém na minha frente. Foi um pouco frustrante sair assim, mas à medida que o tempo foi avançando, a distância entre os participantes também aumentou e aí a música encontra o espaço para fluir nas diferentes direções que projetamos.
Muita coisa mudou de 2018 para cá, e hoje eu corro, para surpresa de muitos, ouvindo músicas lentas, em sua maioria instrumentais.
Em 2019 comecei a correr ouvindo Lenine, leve e suave, Labaq, Quiçá, colocava essas e outras músicas em loop e seguia no meu ritmo, mas conectava minha alma e mente a melodia destas canções inspiradoras. Comecei a sentir que correr assim, com músicas que fazem bem para a alma, me deixava ainda mais rápido e menos cansado.
Quando fiquei fora durante 6 meses, descobri compositores de música clássica contemporânea que me conquistaram. Max Richter, Johann Jóhannsson, Peter Broderick, Arvo Port, Ólafur Arnalds, são os meus preferidos. Posso correr uma hora ouvindo a mesma música, Flight from the city, do Jóhann Jóhannsson.
Mas se vocês me perguntassem qual seria a música que eu levaria para uma corrida, se pudesse ser apenas uma, para ficar on repeat, seria sem dúvida, a Suite de Cello No 1, preludio, dos concertos para Cello do Bach, tocada por Yo Yo Ma.
Hoje mesmo ouvi esse concerto enquanto escrevia essas páginas, e durante minha corrida de 12 km, mais cedo, dentro da redenção.
Ouvir o Yo Yo Ma me leva para uma outra realidade, um espaço alternativo onde o diálogo proposto por ele através das frases que o instrumento cria para nós, se complementa com a natureza e as possibilidades que temos de construir um futuro melhor, mesmo nos tempos que vivemos.
A música também é conexão.
A corrida, a promessa do novo a cada instante, o desafio do desconhecido a cada passada, e a possibilidade do encontro a cada caminho que propomos. Quando corro e ouço música, parece que essas possibilidades, esses caminhos, esses desafios se conectam em uma teia infinita.
A teia da vida, revelada naquele instante.
E para mim, nada pode ser mais intenso do que reconhecer, a todo instante, novas possibilidades.