A tecnologia não vai nos salvar
Se o inferno é um lugar sem paradeiro certo, que se desloca no tempo e espaço, me parece que hoje ele chegou em Porto Alegre.
São 11:33 da manhã e enquanto escrevo este breve texto, confiro a temperatura e a sensação térmica: 35 graus, com sensação de 39. Para quem gosta de números mais espetaculares, são 102 graus de sensação térmica em Fahrenheit.
Mesmo cedo, quando sai para correr, os termômetros marcavam já 30 graus.
Quando corro, gosto de ouvir música clássica contemporânea, que me ajuda num processo de meditação nestes momentos, ou algum podcast que possa me ajudar a iniciar o dia com novas ideias. Hoje, escolhi ouvir um podcast, e por total coincidência, corri ouvindo um episódio do Team Human, que tratava do tema mudanças climáticas. Douglas Rushkoff entrevistou neste episódio, que foi ao ar um mês atrás, o professor Jem Bendell, que escreveu um livro chamado Breaking Together.
Enquanto o calor afetava intensamente meu corpo e meu desempenho, eu ouvia um debate sobre como as mudanças climáticas vão seguir transformando o planeta, para pior.
Eu já tinha lido bastante sobre a questão da tecnologia, sobre como temos um grupo significativo de pessoas que desiste de mudar o comportamento ou de exigir mudanças das corporações e governos porque acredita que alguma tecnologia disruptiva irá nos salvar. Para estes grupos, vamos conseguir água com tecnologia de dessalinização, vamos limpar o ar, vamos criar estufas gigantes para produzir alimentos. Tudo isso, na perspectiva dos dois autores com a qual eu concordo, não vai passar nem perto de resolver os problemas que temos. Fazem parte de um discurso que em certa medida possui relação com a elite corporativa, que busca criar negócio a partir das fragilidades que o planeta possui hoje, as quais foram provavelmente desenvolvidas a partir de outros negócios.
Aparentemente, não existe uma saída única, não existe solução escalável.
Precisamos de mudanças em diferentes níveis. Como cidadãos, podemos mudar hábitos, podemos exigir legislação e questionar empresas que desenvolvem produtos consumindo recursos do planeta. Mas acima de tudo isso, precisamos de uma mudança sistêmica.
Essa mudança passa, provavelmente, por mudar a lógica do sistema que governa o nosso planeta. Acelerar, desenvolver, parece não ser mais possível. Precisamos desacelerar. Em um ambiente onde o sistema impõe constantemente crescimento, e os acionistas precisam cada vez de mais retorno, não existe volta. Todo ano o mercado quer mais, e isso precisa mudar. Acredito que essa mudança passa pelas elites, que tem o controle dos recursos.
Como exemplo, cabe aqui um paralelo com o nosso sistema de educação. Estes dias estava conversando com alguns amigos sobre a crise do ensino no Brasil e sobre as dificuldades que as escolas públicas possuem hoje em dia. Eu disse que um caminho radical para melhorar a educação seria termos, para o ensino fundamental, apenas escolas públicas. Uma de minhas amigas disse não concordar, pois a pessoa deveria ter a opção de escolha em termos de público e privado. Eu acho que ela tem razão. Entretanto, se os nossos filhos, se os filhos daqueles que possuem recursos estivessem nas escolas públicas me parece que existiria uma pressão muito forte para que a qualidade destas escolas melhorasse.
Em termos de sustentabilidade e crise climática, cabe o mesmo raciocínio. Fico pensando se existisse uma lei aqui em Porto Alegre dizendo que não podemos usar ar-condicionado (recurso que muitos não tem em casa). Acho que iríamos sentir ainda mais os efeitos do calor, talvez isso repercutisse mais nas ações de todos.
O fato é que não existe solução fácil, mas precisamos agir para minimizar os impactos. E isso passa por políticas públicas e por mulheres e homens que trabalham nesses espaços com um compromisso com todos nós, como uma comunidade humana.
Quando cheguei em casa, depois de uma hora e meia correndo e refletindo sobre o podcast, segui lendo o livro Recordações de minha inexistência, de Rebecca Solnit. Ela é uma de minhas autoras favoritas. No texto, que revela um pouco de sua história, ela fala brevemente sobre a mudança no governo americano quando Ronald Reagan se tornou presidente. Antes disso, segundo a autora, os EUA haviam atingido um ponto máximo de igualdade econômica, e com o novo presidente, isso começou a mudar. O presidente anterior era Jimmy Carter, provavelmente um dos melhores presidentes americanos.
Dia primeiro de outubro deste ano, Cristovam Buarque e Lucas de Souza Martins escreveram na Folha de São Paulo sobre o aniversário de Jimmy Carter, que completava 99 anos. Segundo os dois autores, Carter foi o primeiro presidente americano a colocar como prioridade do estado o tema direitos humanos.
Hoje, precisamos de políticos como ele, que possam avançar um passo e colocar na pauta os direitos da natureza. Como somos natureza, estamos incluídos nesse grupo.
Agora é meio-dia. O meu relógio marca 36 graus, sensação térmica de 41, ou melhor, quase 106 Fahrenheit.
Sei que as ondas de calor passam, mas os efeitos das mudanças climáticas permanecem e se alastram. Precisamos desenvolver caminhos coletivos para nos tornarmos, como diz Rushkoff, rebeldes contra nossa extinção.