12–10: no lugar que estamos, existem poucos espaços para inovação
Faz alguns dias que não escrevo sobre educação. Provavelmente porque estou nesse momento me adaptando a ausência da Giu em casa e aos 18 anos da Clarinha. Foram semanas intensas de trabalho e também de reorganização.
Mas hoje aproveito para retomar um tema que está presente em minhas aulas e pesquisas envolvendo o Design Estratégico: a importância de projetarmos nossas ações com um olhar diferente, que vai além da clássica proposta de empatia.
Semana passada trabalhei o tema design inclusivo em duas aulas, da graduação, mestrado e doutorado. Tive a oportunidade de revisitar autores, os quais ressignificamos a cada nova leitura, pois o tempo passa, nossas referências e experiências se transformam e a compreensão do que lemos se amplia, se modifica.
Dois autores que nos últimos anos me ajudaram a compreender os perigos de projetar para uma persona que não existe na realidade, foram Todd Rose, com o livro “the end of average” e Caroline Criado Perez, com o livro “invisible women”. Essas duas obras ilustram, respectivamente, o perigo de projetarmos para uma média que na prática não representa ninguém; e o viés de projetação de nosso mundo, considerando geralmente o homem branco médio.
O argumento destes autores se conecta a proposta de Jutta Treviranus, quando ressignifica a clássica proposta de Pareto, de compreender o espaço onde podemos gerar maior impacto com nossas ações. No ambiente organizacional, traduzido como o espaço onde temos 20% do portfolio, por exemplo, que contemplando 80% do resultado. Atuar ali parece fazer mais sentido.
Relendo estes 3 autores, e as duas referências principais que uso para estas aulas, Kat Holmes e Roger Coleman, fiquei pensando qual o impacto disso tudo na educação.
É fato que os espaços de formação em nosso país, especialmente no ambiente privado, são projetados e adaptados para o extrato social que pode circular nestes locais. Assim, temos escolas de ensino fundamental e médio onde a maioria absoluta dos alunos é branca, de classe média e com referências sociais muito próximas. No ambiente universitário, embora exista um pouco mais de diversidade, considerando que parte significativa dos estudantes trabalha para pagar os estudos, temos algo ainda próximo disso. Talvez essa falta de diversidade tenha sido reforçada pela pandemia que vivemos, que deixou evidente que temos uma divisão social que se reflete no acesso a tecnologia digital.
Com o contexto teórico, e a minha leitura sobre o ambiente educacional com o qual estou acostumado a lidar, fiquei pensando nas reais consequências deste processo para o nosso futuro enquanto país, e seu impacto para todos nós, enquanto cidadãos.
Uma última leitura me deixou ainda mais preocupado. Finalizei durante o final de semana o livro Casta, da autora Isabel Wilkerson. Nesse livro, dentre várias questões pertinentes para entender a dinâmica social que vivemos, a autora discute o comportamento natural dos grupos para manter seus privilégios, mesmo que isso impacte negativamente em outros grupos.
Nesse momento, com tantas informações descritas aqui, fico pensando em como posso avançar esse texto para demonstrar que o modelo vigente, assim como o modelo de consumo e impacto ambiental que vivemos, não tem como prosperar no médio e longo prazo.
Um dos motivos óbvios para uma necessária mudança é tornarmos mais democrático o acesso à educação e a transformação que esse acesso pode gerar para as pessoas. Entretanto, mesmo sem pensar em um motivo nobre como esse, existem outros pontos que precisamos considerar se olharmos para a própria sobrevivência dos grupos dominantes.
O processo de projetação, de construção da sala de aula, de construção dos espaços educacionais é em sua maioria ultrapassado, irrelevante e sem identidade.
Mesmo aqueles currículos e salas de aula que julgamos inovadores acabam sendo a replicação de algo que favorece uma dimensão específica, como a dinâmica da aula, mas ignora outras variáveis. Além disso, quando o modelo inovador prospera, a tendência é a copia deste modelo, sem uma adaptação para as diferentes realidades.
Quando pensamos em currículo, acontece a mesma coisa.
Assuntos relevantes para a compreensão de nossa origem, para a compreensão de nosso país, ficam circunscritos a atividades específicas, descoladas do currículo integral. Falar por exemplo sobre indígenas, e limitar esse debate a uma disciplina, sem a inserção de autores indígenas nos currículos, mostra o espaço que estes devem ter: a menor fatia curricular possível.
Vale o mesmo quando avaliamos as disciplinas e identificamos um padrão quase que universal: autores brancos, homens e com um olhar específico e dominante da realidade.
Mas o fato é que quando olhamos para a nossa sala de aula, para o público com o qual interagimos, isso faz sentido: estamos projetando para a maioria que está lá, a partir das bases sociais que fazem sentido para essa maioria, perpetuando um modelo que até então serviu para esse grupo.
O fato é que essa maioria é uma ilusão.
Dentre as questões que ignoramos está o fato, por exemplo, de sermos a segunda maior nação negra do mundo. Essa é a real maioria, que está excluída dos espaços de decisão.
Acredito que estes argumentos sejam apropriados para, pelo menos, repensarmos nossa ação como educadores. Mas além disso, existe um elemento fundamental para esse debate, o que vou chamar de saturação projetar.
A professora Jutta Trevinarus usa em seu artigo uma imagem que mostra uma dispersão de pontos, com a maioria deles (80%), no centro. É uma representação interessante da clássica curva normal. Entretanto, embora 80% esteja no centro, muito próximo uns dos outros, os 20% que sobram estão espalhados em um universo muito maior. Essa imagem permite percebermos que os 20% que sobram, que não são contemplados, representam uma diversidade de 80% nesse espectro.
Em outras palavras, quando projetamos para os 80%, estamos dando conta de um pequeno pedaço de diversidade, de possibilidades, de alternativas para a inovação: estamos projetando para os mesmos, do mesmo jeito, no mesmo lugar. Nesse espaço, a possibilidade da novidade é pequena.
Quando saímos do centro e abrimos o olhar, de maneira sistêmica e considerando o espectro todo, vemos uma infinidade de possibilidades, muitos caminhos para gerar o novo, e para impactar os 20% não contemplados no núcleo.
Adaptando esta metáfora a nossa realidade, onde estes 20% são na prática a maioria da nossa população, temos um caminho aberto, que nos permite retomar um processo de inovação democrática e transformadora, uma inovação que dá respostas sociais, amplia o acesso, constrói diversidade.
É nesse espaço, da diversidade, que vem meu último argumento para a necessária transformação dos processos de inovação e construção da sala de aula.
Enquanto olharmos para o meio, para o centro, para o que sempre fizemos, continuaremos formando pessoas iguais, pessoas que dialogam apenas com aqueles que pensam da mesma forma, pessoas que desconhecem as diferentes realidades existentes. Continuaremos formando pessoas que tentam perpetuar um modelo excludente, repetitivo, sem vida, sem a possibilidade de construirmos um mundo diferente.
É por isso que proponho aqui uma reflexão para nós, professores.
Precisamos ampliar nosso olhar, propor alternativas que nos afastam do núcleo, criar novas possibilidades, ler textos diferentes, construir a partir do diverso, questionar os modelos padrões. Com isso ajudaremos verdadeiramente os jovens que interagem conosco a se preparar para o presente e o futuro, transformando suas vidas e a dos outros. Se não avançarmos nisso, vamos mantê-los na ilusão que criamos ao longo do tempo, em um sistema que está com os dias contados. E se eles não acordarem, ficarão obsoletos, ou deslocados de um mundo que está em constante transformação.
Se não se acordarem, provavelmente logo estarão nas pontas da curva normal, ou longe do centro desse novo modelo.
E nesse caso vão sentir o que faz com que tenhamos que mudar o modelo atual.
Vão sentir o que é exclusão.
Referencias
Coleman, Roger. About Inclusive Design. Design Council.http://cmap.upb.edu.co/rid=1153176144406_1235390754_1547/Inclusive%20Design.pdf
Criado-Perez, Caroline. Invisible Women: Exposing Data Bias in a World Designed for Men. Vintage Digital; 1ª edição (7 março 2019)
Holmes, Kat. Mismatch: How Inclusion Shapes Design (Simplicity: Design, Technology, Business, Life). The MIT Press (16 outubro 2018)
Rose, Todd. The End of Average: How We Succeed in a World That Values Sameness. HarperOne; Illustrated edição (19 janeiro 2016)
Treviranus, Jutta. Inclusive Design: The Bell Curve, the Starburst and the Virtuous Tornado, 2019. https://medium.com/@jutta.trevira/inclusive-design-the-bell-curve-the-starburst-and-the-virtuous-tornado-6094f797b1bf
Wilkerson, Isabel. Casta: As origens de nosso mal-estar. Zahar; 1ª edição (30 abril 2021)